Quando eu era adolescente, eu cabulei a aula de inglês pra dar uns beijinhos. Meu pai passou e viu. Eu devia ter uns 14 anos. Cheguei em casa e ele me perguntou ‘como foi a aula?’, ‘boa’, ‘é?’, ‘é’. Ali eu já entendi que ele tava me testando. Silêncio. ‘E quem era aquele menino que tava estudando com você então?’, assim, à queima roupa. Dei risada, contei quem era e dali surgiu o bordão que ele passou a usar sempre que flagrava alguma coisa, minha ou de alguma amiga: “nada foge aos olhos da verdade”.
Nesse dia, ficou por isso mesmo. Eu sempre fui muito responsável, não foi um problema. A gente riu da situação e a vida seguiu. Meu pai é engraçado. Muito engraçado. Ele é atencioso, amoroso, amigo. Essas são as coisas que eu mais amo sobre ele. Ele se esforça pra me fazer rir, gosta de me agradar e fazer todas as minhas vontades. É, eu definitivamente sou a princesa do papai. Quando ele quer.
Aqui, minhas ideia não é nem reclamar do meu pai. Meu pai é o melhor pai que eu poderia escolher nesse mundo todinho, mas trazer um papinho que eu tive com umas amigas há algum tempo. O assunto era outro, o contexto completamente diferente, mas o que chegamos à conclusão é: algumas pessoas podem podem escolher o que está no radar delas e, normalmente, são os homens. Com uma filha cocota de 14 anos, meu pai tava com o radar muito ligado pra ver o que eu tava aprontando por aí.
Ta, não quero que você leia isso e fique igual essa mulher aqui em cima. De novo, minha intenção não é falar mal de homem, muito menos do meu pai. Mas de voltar a questionar o que estamos reproduzindo, os padrões que insistimos em manter. E aí, vai um papinho cabeça.
“Minha mãe é muito chata”. Quantas e quantas e quantas vezes eu já ouvi e falei isso? Minha relação com ela nunca foi das mais fáceis. Eu sempre me senti cobrada demais, inadequada e até pouco compreendida. Hoje eu vejo que, talvez, tudo isso foi pela carga mental dela. Meu pai é um baita parceiro, mas é muito mais operacional do que estratégico, se é que posso colocar dessa forma.
Ele lava a louça, ele limpa a casa, ele divide as tarefas com a minha mãe, mas é ela que precisa estar atenta. Se na lista de supermercado tem tomate, café, abobrinha e alho, muito provavelmente ele vai voltar com queijo parmesão, cenoura, rúcula e amendoim. Pra viajar, ele ajuda a carregar e descarregar o carro, mas ela se encarregou de toda a logística do porta-malas, da quantidade de comida que vai precisar, o que ainda precisa comprar, o que tem que consumir antes para não estragar, se pegou a ração da cachorra, o remédio da cachorra, se fechou a casa… ufa. E eu comecei a perceber que isso não faz parte só da dinâmica deles.
Talvez eu esteja aqui contestando o patriarcado, nem sei. O que eu quero trazer é como esses comportamentos extrapolam a lista de compras. E aí, eu vou dar uma viajada e te levar pra uma outra situação que mostra que quando você está fora do radar, você não vale nada.
Imagina isso: você ta na balada e o cara chega pra conversar com você: “Pô, to te olhando a noite toda. Você é mó gata, queria te beijar”. Aqui, o alvo foi detectado e o alvo é você. Ele vem que nem um míssel, sem chance de erros. Mas, é bloqueado pela sua falta de vontade. Dentro dele, você automaticamente se torna uma inimiga: “nem queria mesmo ficar com você, você é zuada” e vamos dali pra baixo… Quem nunca viveu isso que levante as mãos pros céus e agradeça, porque infelizmente é mais comum do que a gente gostaria.
A gente é chata ou só estamos cansadas? E por a gente, to falando de mulheres em geral, mas pode ser também todo mundo que é mais agilizado e sacudido e em algum momento se sente explorado. A proatividade pode ser um castigo, às vezes. Ter o radar ligado, também. É muito bom, é verdade. Eu dificilmente serei atropelada, mas isso faz com que eu cobre uma eficiência infinita, impossível de atingir. Acho que é mais justo dizer que os atentos estão exaustos, então.
Falei um pouco sobre não ter todas as respostas e da liberdade e paz que isso pode trazer pra nossa vida outro dia, mas aqui também dá pra extrapolar essa reflexão e pensar se não estamos tão cansadas justamente por pensar por nós e pelo outro. Por ter tanta lucidez que o radar ta sempre se expandindo e se expandindo e se expandindo num loop eterno de empatia e preocupação.
Conquistando cada vez mais territórios pra tentar dominar na certeza que ninguém vai fazer tão bem quanto a gente e que se não for bem feito, alguém vai se decepcionar. Ou, no outro extremo, nada que não esteja no meu radar tem importância e, se o outro se decepcionou, aí ele é problema dele.
Expressar frustração às vezes é um privilégio dos que têm um radar em volta do próprio umbigo. Não quis me beijar? Despejo todo meu ódio em você. Você pensa diferente de mim? Destilo todo o veneno do mundo. Não concorda comigo? Você não serve. Ou até, com exemplos mais sutis. Você precisava de sabão em pó? Mas o almeirão tava com um preço ótimo. E aqui, rola essa terceirização pro outro resolver o B.O., que vai desde superar um possível trauma até ter que voltar no mercado lotado.
Nem sempre é por falta de consideração ou falta de empatia, muitas vezes é por não saber olhar pro outro e identificar as necessidades que ESTÃO SENDO DITAS - ou expressadas de formas mais abstratas, é verdade. Os sacudidos vão estar com a atena ligada pra fazer acontecer, mesmo que os de radar curto não identifiquem o que precisa ser feito.
Eu sinto que é a minha obrigação olhar o outro. Pensar o que seria educado, adequado, conveniente. Mas quando o outro não olha pra mim, como lidar com a sensação que eu to sendo completamente menosprezada? Como me sentir menos trouxa? E por que dói tanto ser trouxa? Não é melhor substituir por empática? Ou é só um jeito bonito de ser trouxa?
Pode ser um draminha, mas nada foge aos olhos da verdade e a verdade é que tem muita gente que precisa entender que o mundo só funciona porque outros olhos mais atentos fazem ele rodar.
Talvez essa roda toda seja terapia. Faça, se puder.
Hoje eu prefiro ser trouxa e olhar pro outro do que ficar presa no meu próprio umbiguinho. Contrariei a expectativa da filha única princesa do papai, né?
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E aí, sua antena ta ligada? Compartilha esse texto com mais um ~trouxa~ atento de plantão.
Acho que nao teve nenhum texto até agora que não me identifiquei. Impressionante como você descreve as situações tão bem e de forma leve. Amo que faz eu sentir que não estou sozinha :)